segunda-feira, setembro 22, 2025

David Gilmour — Live at the Circus Maximus, Rome | RESENHA

Testamento em Roma: A Arquitetura Sonora de David Gilmour no Circus Maximus





Neste domingo, 21/09, sentei exatamente no miolo do IMAX, o sweet spot, e a tecnologia Dolby Atmos tratou de transformar um concerto em arquitetura sensorial. O filme abre com David Gilmour lembrando ao mundo, com ironia doce e precisão absoluta, que é “um fucking legend”. A partir daí, tudo converge: a imagem monumental, a projeção que não estoura highlights e preserva grão e textura e, sobretudo, um desenho de som tridimensional que dá altura real às coisas. Não é só estéreo largo, há planos, profundidade de campo acústica, objetos sonoros escalando o teto, delays que orbitam, reverbs que pairam como véus sobre a plateia. Senti o ataque da palheta e, um segundo depois, a cauda do plate reverb suspensa acima de mim; ouvi harmônicos viajando pelos canais de altura e retornando ao palco como se fossem matéria palpável. Foram 22 faixas, duas horas e meia de música que respira, cresce e, em vários momentos, simplesmente corta as pernas no melhor sentido.

A narrativa é construída com astúcia. “5 A.M.”, quase vinheta de timbre e intenção, prepara a paleta de cores do set. “Black Cat” e “Luck and Strange” fixam o clima meditativo do álbum novo, um disco nascido da reflexão pandêmica sobre a finitude e a fragilidade da vida. Então, a ponte se abre para o cânone: “Breathe (In the Air)” e “Time” entram com voicings mais arejados, a bateria deixando o ar circular e os relógios texturizados numa espacialidade que não grita, envolve. “Fat Old Sun” vem pastoral, como se fosse um campo aberto filmado ao amanhecer. “Marooned”, raridade no palco, ergue uma catedral elétrica: sustain quase vocal, feedback controlado na borda do acoplamento, pads que expandem o campo harmônico sem confundir o grave. “Wish You Were Here” volta a pele para o osso, violões brilhando na faixa dos 6–8 kHz, voz na cara e um coro espontâneo da sala que o mix respeita como textura, não como ruído.

O miolo do concerto equilibra introspecção e catarse com precisão cirúrgica. “Vita Brevis” funciona como interlúdio respirado. “Between Two Points”, com Romany Gilmour, pousa no meio do IMAX como uma câmara de vidro: voz límpida em tessitura média, harpa tratada com leve compressão paralela, teclas que riscam arabescos sem atropelar o silêncio. “High Hopes” reintroduz o sino como personagem rítmico, o pedal steel como lâmina de luz. “Sorrow” chega como muralha sônica, fuzz empurrando válvulas até o limite, mas com o médio limpo o bastante para a muralha ter desenho, não só massa. “The Piper’s Call” amarra a gramática nova de Luck and Strange ao fraseado clássico de Gilmour, grooves binários com bordados melódicos no teclado, a guitarra falando com a parcimônia de quem sabe que um bend milimétrico vale mais do que trinta notas velocíssimas.

E então acontece o momento que eu não esperava: “A Great Day for Freedom”: o luto das promessas não cumpridas do pós-muro, a ressaca de uma esperança que não virou plenitude. No palco, duas guitarras fazem contracanto de manual, às vezes em paralelismo oblíquo, e quando convergem viram segunda voz uma da outra. É uma conversa entre iguais, uma simbiose técnica e afetiva que me fez chorar. Uma das coisas mais lindas que já ouvi. Ali, o virtuosismo não está em correr; está em sustentar a nota até que o sentido apareça. É elegia, é testamento, é aquele instante em que a música deixa de ser performance e se torna rito. E não é difícil ouvir, por baixo de tudo, a ideia de despedida, um artista de 79 anos escrevendo com som aquilo que as palavras não dão conta.

Daí em diante, o arco dramatúrgico escala. “In Any Tongue” ressurge como lamento poliglota contra a barbárie, a montagem de vozes meticulosamente distribuída no espaço. “The Great Gig in the Sky” abandona a catarse solitária e vira tapeçaria coral, Romany e mais três cantoras costurando timbres distintos até um clímax harmônico de levantar a nuca da poltrona. “A Boat Lies Waiting”, o meu ouvido sempre volta ao fôlego que esta música pede, vem com a delicadeza de barcarola para piano e respiros. “Coming Back to Life” traz o agradecimento explícito a Polly Samson, gesto que recoloca a autoria em seu lugar, parceria criativa injustamente atacada por torcida organizada de saudosistas de Roger Waters, mas que aqui aparece com nitidez e gratidão. E as novas, “Dark and Velvet Nights”, “Sings” e “Scattered”, mostram o truque difícil, dialogar com a memória sem repetir a fórmula, usando modos dórico e eólio, cadências suspensas e voicings abertos que carregam DNA floydiano sem virar pastiche.

O final é liturgia. “Comfortably Numb” encerra com solo cantabile, delays em cascata e um teto de luz volumétrica em 3D projetado de fora do palco, desenhando geometrias sobre a plateia, uma extensão ótica do que o Atmos faz no domínio sonoro. Senti a guitarra atravessar o espaço físico antes de chegar ao peito, como se a nota curvasse o ar. Saí do cinema com a certeza de que tanto o álbum quanto o show não apenas pensam a morte, encenam um adeus possível. Luck and Strange nasce de um período em que todos fomos obrigados a encarar finitude e fragilidade, o filme capta esse estado com honestidade e grandeza. A sensação não é de fim amargo, mas de passagem, uma carta final escrita em linguagem musical, capaz de revisitar o passado, agradecer o presente e, quem sabe, acenar para um silêncio que também é forma de beleza.

E porque sou fã desde sempre, discografia completa, shows oficiais e até bootlegs obscuros, preciso registrar a medida da surpresa. Já vi P•U•L•S•E, Remember That Night, Live in Gdańsk, Pompeii recente, e ainda assim a noite no Circo Máximo filmada para IMAX me pareceu a síntese mais poderosa de tudo o que Gilmour é no palco. Não por ser maior, mas por ser mais íntegra, banda respirando junto, mix que respeita o silêncio como parte da música, fotografia que abraça o crepúsculo romano sem flertar com o kitsch. E uma curadoria que costura décadas sem pedir desculpas, como convém a quem já não precisa provar nada.

No plano técnico, há escolhas que dizem muito. Headroom generoso, transientes preservados, grave firme sem inflar. Guitarras que ocupam o médio-agudo sem agredir. Teclados que ampliam a largura sem apagar o corpo do baixo. Bateria com pratos de cauda controlada, abrindo só quando o clímax pede. O Atmos serve à música, não o contrário. Quando as alturas entram, entram para que a emoção ganhe contorno, não para mostrar efeito. É a velha lição de produção: tirar o que sobra até que o essencial brilhe. E o essencial, aqui, é uma assinatura melódica reconhecível em meio compasso, aquela combinação de sustain, micro-bends temperados e vibrato redondo que só ele tem.

Se havia alguma dúvida sobre a vitalidade de Gilmour aos quase 80, o filme a dissipa. Há ternura na economia de gestos, há autoridade na economia de notas. Há grandeza no reconhecimento público a Polly, há generosidade na entrega de palco à Romany, há coragem em dizer, com um sorriso e um palavrão bem colocado, que a lenda está viva e consciente do próprio tamanho. E, ainda assim, há humildade suficiente para que a música fale mais alto que o mito. Saí do IMAX com olhos marejados e uma certeza difícil de explicar: poucas vezes um artista me ofereceu um adeus tão sereno, tão bonito, tão cheio de vida, ao falar da morte.

Se isto for mesmo um aceno final, é do tipo que dignifica toda uma história. E se não for, tudo bem. Fica como uma aula definitiva de como usar espaço, tempo e timbre para organizar sentimentos intraduzíveis. Entre a pedra do Circo Máximo e a escuridão climática da sala, aprendi de novo que um grande concerto não é a soma de músicas, câmeras e canais, é um pacto. No domingo, no meio exato da sala, com luzes em 3D por sobre a cabeça e a guitarra cortando o ar, eu assinei esse pacto com lágrimas nos olhos.

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